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Caso Clínico #01 – O Soldado Ryan

Após 12 anos de formado com mais de 30.000 atendimentos, incluindo muitos atendimentos de urgência e emergências, algumas histórias foram marcantes na minha profissão de médico, além de fornecerem importantes lições.

Soldier salute at sunset

Vou voltar no meu primeiro ano após o término da faculdade, em 2008.

Nessa época, minha vida melhorou, consegui (com sorte e muita felicidade) a única vaga de médico do Exército em Ribeirão Preto na 5ª CSM, e estava fazendo meu treinamento militar inicial em Pirassununga no 13º Regimento de Cavalaria Mecanizado.

Certo dia recebo um comunicado urgente do Exército. Eu deveria retornar imediatamente a Ribeirão Preto. Motivo => Um soldado havia tido uma Parada Cardiorrespiratória (PCR) durante o treinamento físico.

Sim, era isso, não tinha entendido errado: Um jovem de 18 anos, tinha tido uma Morte Súbita Revertida durante o exercício físico.

Como ocorreu esse evento trágico?

Rotineiramente 3 vezes por semana, nós fazíamos exercícios físicos em um Centro de Treinamento (Cava do Bosque). Após um treino de corrida, o Soldado Ryan (nome fictício), disse que precisava tomar uma água. Foi até o bebedouro, tomou um pouco de água e caiu no chão desacordado. Estava sem pulso, sem respiração, sem responder a qualquer chamado. A maior emergência que pode existir => Parada cardiorrespiratória.

Sim! a Parada Cardiorrespiratória (PCR) tem como característica, diminuir em torno de 10% a chance de sobrevivência para cada minuto que passa.

Pelos relatos, rapidamente o Tenente-Coronel junto com os militares iniciaram os primeiros socorros com massagem cardíaca, e acionaram o médico do local, além de chamar a ambulância.

Logo o SAMU chegou, o médico Dr. Salvador Brasileiro (nome fictício) deu um primeiro choque (desfibrilação), iniciou manobras de suporte avançado de vida e colocou o jovem na ambulância para transferência ao Hospital mais próximo. Há relato de terem sidos necessários mais choques no caminho, um total de 07 choques ou desfibrilações. Foi feito também intubação oro traqueal e posteriormente, internação em UTI.

PCR - Cadeias de sobrevivência.PNG

No dia seguinte, eu já estava em Ribeirão Preto e fui logo falar com o Coronel. O Comandante solicitou que nós fossemos ao hospital, e para eu tomar ciência de tudo o que estava acontecendo e dar todo suporte necessário aos familiares.

Na UTI, as notícias não eram boas, ainda em coma, intubado, sem diagnóstico do motivo da parada cardíaca, o rapaz de 18 anos, iria ficar um bom tempo internado na tentativa de sobreviver.

Compreendendo um pouco mais dos detalhes!

Nos dias seguintes, o quartel estava em alvoroço, somente se comentava sobre o assunto do Soldado Ryan, todos me perguntavam o que será que tinha acontecido, se ele iria sobreviver. Os exercícios físicos foram momentaneamente suspensos e algumas investigações começaram a serem feitas.

Os familiares, logicamente estavam muito preocupados e ansiosos, mas me recordo que eles foram educados e totalmente honestos em relação ao que tinha acontecido. Explicaram que o Soldado Ryan já estava passando mal ao jogar futebol, já tinha tido sintomas como pré-sincope, tontura, durante esforço físico. Aqui vou pedir desculpas, mas como já se passaram mais de 10 anos, não recordo exatamente se o Ryan tinha tido somente sensação de desmaio (pré-sincope) ou se já havia tido uma perda de consciência antes.

Essa parte que estou relatando trás importantes lições e aprendizados.

Primeira Lição: Sintomas no esforço físico ou logo após esforço têm que ser investigado!

Dor torácica no esforço físico ou na recuperação é um sinal de alerta.

Desmaio (síncope) no esforço físico é algo que nunca pode deixar de ficar sem uma investigação adequada!!

Outros sintomas como palpitações, tontura aos esforços, sensação de desmaio, também necessitam de investigação.

Dito isso, surgem algumas perguntas:

Se ele estava tendo sintomas porque foi aceito no exército?

Ele passou por uma adequada avaliação pré-participação de atividade física?

Tudo isso foi solucionado, o que nos trás novas lições.

Foi avaliado o prontuário de registro da entrevista do Soldado Ryan antes de entrar para o Exército. Foi revista a avaliação do médico que fez a liberação para o soldado entrar no Exército. Confesso que eram letras feias, escritas com correria, enfim letra de médico. Porém o importante era que estava tudo registrado, escreveu que o jovem negava sintomas, descreveu o exame físico, entre outras anotações. O médico em questão, também jovem, com pouco tempo de formado, tinha escapado de ter um marco pesado em sua carreira.

Mais uma vez a família, muito honestamente, relatou que o Soldado Ryan na imensa vontade de entrar para o exército, tinha omitido as informações de que estava passando mal. Os familiares disseram que para Ryan, entrar para o Exército Brasileiro era o seu sonho. O Coronel (a quem até hoje admiro pela sabedoria que tinha) ciente das informações, me disse que contava comigo para oferecer todo suporte para família, independente de qualquer coisa, pois era uma família que estava unicamente preocupada com a sobrevivência do seu menino.

Lição número 02 (para médicos): Algo fundamental, mas que não custa lembrar, é da importância das anotações no prontuário!

E como foi que evoluiu a situação do Soldado Ryan?

Foi uma situação difícil, devido a intubação prolongada, foi necessário realizar uma traqueostomia, também foi solicitado uma transferência para o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP.

Até então, o soldado seguia sem um diagnóstico médico firmado.

O primeiro hospital fez muito bem o papel de manter o paciente vivo e dar condições de recuperação. Quando foi transferido para o Hospital das Clínicas, o Soldado Ryan já estava mais estável e pode iniciar uma investigação. Logo nos primeiros dias foi feito o diagnóstico: uma anomalia de coronárias.

Diagnóstico: Anomalia de coronárias

No caso do Soldado Ryan, ele já nasceu com essa má formação. A sua artéria coronária esquerda que irriga grande proporção do coração, tinha sua origem no lado direito e para chegar no lado esquerdo, estava passando entre a artéria aorta e a artéria pulmonar.

No esforço físico, o coração exige uma maior demanda de fluxo sanguíneo e oxigênio, porém a artéria coronariana esquerda responsável por essa função, era comprimida pela Artéria Aorta e pela Artéria Pulmonar e dessa forma, gerava-se uma isquemia miocárdica. Sabemos que isquemia pode gerar arritmias, inclusive isquemia pode levar a fibrilação ventricular (uma arritmia relacionada a morte súbita)

Esse quadro poderia ter sido diagnosticado antes da ocorrência da Morte Súbita?

Sim. Essa é a Lição 03 – Prevenção!

Importante reforçar que o jovem já estava apresentando sintomas no esforço físico. Dessa forma, em um Teste Ergométrico bem feito, possivelmente teria alguma manifestação de isquemia miocárdica e/ou arritmias no esforço e/ou na recuperação.

Cabe ressaltar que um Teste Ergométrico mal feito, em que o paciente não faz o esforço necessário ou não tem a monitorização mínima recomendada durante a recuperação após o esforço, poderia deixar passar sinais eletrocardiográficos que indicariam uma alteração de isquemia ou arritmias.

Teste Ergométrico – Entendendo os parâmetros do Teste de Esteira

O jovem tinha sido avaliado no SUS e estava aguardando a realização de exames (não me recordo quais exames pediram e se solicitaram o teste ergométrico). Nessa época (01 década atrás) sabia que o SUS de Ribeirão Preto tinha áreas de excelência, como por exemplo, tratamento de linfomas, lúpus e tratamento de doenças cardiológicas de alta complexidade, porém o SUS tem infelizmente uma boa parte que é precária, longe das condições ideais. Naquela época ouvia comentários que talvez era mais rápido conseguir um Cateterismo Cardíaco, do que um Teste Ergométrico pelo SUS. Fato é que os sintomas descritos mereciam um afastamento de atividade física até o esclarecimento diagnóstico que poderia vir através de um Teste Ergométrico realizado adequadamente.

Quais as principais causas de Morte Súbita em pacientes jovens durante exercício físico?

Tabela - Morte Súbita Relacionada ao exercício.JPG

Vemos no quadro acima, que a maioria das causas cardiovasculares relacionadas a Morte Súbita Cardíaca em atletas jovens tem relação com a Cardiomiopatia Hipertrófica.

Ainda vou fazer um texto específico sobre a Cardiomiopatia Hipertrófica que é uma doença que pode acometer 01 em cada 500 adultos, sendo considerada a principal causa de Morte Súbita no esforço físico em jovens com menos do que 35 anos. Mais de 90% dos portadores de Cardiomiopatia Hipertrófica tem alguma alteração eletrocardiográfica no ECG de repouso. Segundo informações do uptodate, menos de 5% dos portadores de Miocardiopatia Hipertrófica tem eletrocardiograma normal. O diagnóstico pode ser feito com boa acurácia através do ecocardiograma. O Teste Ergométrico também pode detectar alterações relacionadas a gravidade como arritmias, resposta deprimida da pressão arterial no esforço, entre outros.

Link: O que é o Ecocardiograma?

Vemos que a anomalia de coronárias aparecer como segunda causa mais frequentes de morte súbita relacionada com exercício em atletas jovens.

Outras causas de Morte Súbita em Atletas Jovens

Aqui vou usar como fonte de referência dados do uptodate (empresa que considero uma das mais confiáveis em informações médicas e que mantém atualizações frequentes).

Em um estudo com 06 milhões de recrutas militares nos Estados Unidos, com média de idade de 19 anos (17 a 35 anos). 86% das mortes súbitas foram relacionado ao exercício.

Origem anômala das coronárias correspondeu a 33%

Miocardite 20%

Doença Ateroscleróticas das Coronárias 16%

Miocardiopatia Hipertrófica 13%

Abro parênteses para explicar dados acima, em que a Miocardiopatia Hipertrófica não foi causa mais comum. Acredito que tal fato foi em decorrência da idade média ter sido muito jovem (19 anos).

O uptodate também ressalta diferenças entre países, sendo que na Itália a Displasia Arritmogênica de Ventrículo Direito ou Cardiomiopatia Arritmogênica do Ventrículo Direito é uma das causas mais comuns de morte súbita relacionada ao esforço físico. Esse fator explica parcialmente, a recomendação de realizar eletrocardiograma em uma avaliação antes da participação em atividades físicas, por parte dos guidelines europeus.

Outras causas de Morte Súbita Cardíaca são:

Síndrome do QT longo (possível de ser detectada por um eletrocardiograma)

Síndrome de Brugada (possível de ser suspeitada pela história familiar e por eletrocardiograma)

Taquicardia Ventricular Polimórfica Catecolaminérgica (não aparece no ECG de repouso, mas pode ser detectada em um Teste Ergométrico)

Intervalo QT curto (possível de ser detectada por um eletrocardiograma)

Síndrome da repolarização precoce (possível de ser detectada por eletrocardiograma).

Finalmente o uptodate cita investigações em que a Morte Súbita Cardíaca em jovens atletas que não tinham alterações cardíacas prévias, porém estavam usando hormônios anabolizantes para aumentar a performance cardíaca, e foram encontrados na autópsia achados de miocardite ou hipertrofia.

Em uma visão geral de tudo que foi descrito acima, vimos que até mesmo um simples, rápido e barato exame de eletrocardiograma, pode ser muito importante em uma avaliação para exercício físico.

Voltando ao caso clínico, como ficou o soldado Ryan ao final de um ano?

No final de um ano (2018), o Soldado Ryan ainda tinha a marca da cicatriz da traqueostomia, estava sem sequela motora ou seja tinha todos os movimentos do corpo preservado. Sobreviveu, ficou com uma leve sequela em relação a memória, havia relato de esquecer itens nas compras, por exemplo, chegava na padaria e esquecia o que tinha que comprar.

E o Exército Brasileiro, como lidou com os médicos?

O Exercício Brasileiro em um dia que já havia marcado uma reunião em data especial, homenageou os dois médicos que participaram do atendimento do Soldado Ryan. O médico que estava no local na hora da Parada Cardíaca e o Médico do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU).

Eu sinceramente achei muito justa a homenagem ao Dr. Salvador Brasileiro médico do SAMU, era um médico com muita experiência em Emergências, eu já o conhecia como médico contrato da Unidade de Emergência do HC-FMRP-USP e sabia da sua excelente capacidade como médico.

Dr. Salvador Brasileiro ajudou a salvar a vida do jovem.

No fundo eu sabia que o médico do local não tinha feito muita coisa, talvez porque tudo foi muito rápido e eu não estava presente, mas sei que o Tenente-Coronel merecia também uma homenagem, o fato do soldado não ter ficado com nenhuma sequela neurológica grave, deu-se ao fato da massagem cardíaca ter sido de qualidade, realizado de prontidão e acionamento rápido do SAMU.

O Tenente-Coronel ajudou a evitar sequelas neurológicas graves no jovem soldado.

Um sinal de que o treinamento da população em relação a PCR pode ajudar a salvar vidas.

Lição básica em uma PCR: necessário pedir por ajuda e desfibrilador o mais rápido possível (SAMU – 192) e realizar uma massagem cardíaca com qualidade, para evitar sequelas e melhorar a chance de sobrevivência.

Considerações finais:

Esse acontecimento marcou meu início da profissão de médico em 2008.

Em resumo, trouxe algumas lições importantes. Sintomas no esforço devem ser avaliados adequadamente. O prontuário médico é importante.  O treinamento da população sobre como agir em uma PCR trás resultados.

Esse caso clínico serve como uma revisão das causas cardiológicas de Morte Súbita e um reforço em relação a ficar atento a sinais de alerta que o organismo nos dá, e um incentivo a realizar uma prevenção.

Em relação ao meu ano de médico Tenente do Exército Brasileiro, posso dizer que foi um ano excelente. Apesar de recém formado em 2008, todos me tratavam com respeito, eu tinha uma boa qualidade de vida e gostava do que fazia, além das amizades. Infelizmente, perdi o contato com a maioria do pessoal dessa época. Ao sair do exército entrei logo em seguida em um período conturbado da minha vida que foi a Residência Médica no Hospital das Clínicas de 2009 a 2011, mas que foi de extrema importância para evoluir na profissão.

Esse ano bom no exército até me inspirou a fazer uma recordação de como foi atuar como médico do Exército Brasileiro em Ribeirão Preto => Minha Vida de Médico #01 – Exército Brasileiro

Enfim, a história é real, somente os nomes são fictícios. Os eventos cardiológicos em jovens realizando exercícios físicos são raros, mas trágicos. Acontecem, mas tem prevenção!

Um grande abraço aos meus amigos do Exército Brasileiro e espero ter contribuído com alguma informação relevante!

Textos relacionados:

Teste Ergométrico – Entendendo os parâmetros do Teste de Esteira

Ecocardiograma

Check-up Cardiológico

Exercício físico

Minha Vida de Médico #01 – Exército Brasileiro

Sobre Dr. Rafael Otsuzi

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